terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

15.



Hoje o carteiro vai bater à porta de nossa casa, com o presente que eu preparei para o teu aniversário.

É verdade e tu não estás à espera.

Olharás para as mãos dele e indagarás se te escrevi alguma carta.

Ele mostrará as suas mãos vazias e dirá, ainda surpreso, que traz nos bolsos uma velha tarde.

E acrescentará, sorridente, que é a primeira vez que transporta uma velha tarde nos bolsos.

Ele porá a velha tarde nas tuas mãos para que tu a abras.

E tu verás que eu tenho 14 anos, que acabei de mudar de escola, e que estou a ir contigo de carro de nossa casa para a minha nova escola.

Eu tenho uma mochila pesada de pensamentos aos meus pés. Os teus brincos. Duas golas arredondadas sobre uma camisola de malha, num padrão xadrez com três cores fortes.

Tiro alguns cadernos da mochila: fui levada a acreditar nos cadernos debaixo dos braços como sinal de maturidade.

Atravessámos a ponte e eu torço para que o carro tropece nos kilómetros que consome.

E tu verás como estás ali ao meu lado, a falar-me de todas as coisas bonitas da vida, que fazem os meus medos ficar do tamanho dos meus dedos.

[Os madredeus dedilham "As Ilhas dos Açores" por debaixo das palavras que trocámos.]

E tu lerás nos meus pensamentos a vontade de que a escola seja muito longe, num país onde não se chegue nunca.

[Porque há muito ruído à volta, mãe. Mas no caminho que faço contigo faz sol e imaginamos em silêncio a forma d` “O pomar das laranjeiras”. ]

E tu sorrirás ao perceber que, ao longo da viagem, me vou abrindo em gargalhada e me despeço de ti sem angústia.

[Porque há muito ruído à volta, mãe, mas de repente eu deixei de o ouvir]


Hoje o carteiro vai bater à porta de nossa casa, com o presente que eu preparei para o teu aniversário.

E tu agarrarás com as tuas mãos a tarde dos meus 14 anos em que eu percebi..

Que a imortalidade é não haver medida na medida que vai de mim até ti.



Na imagem: "Irises" (C.Monet)


2 comentários:

aAprendiza disse...

Os teus escritos gritam delicadeza, Jones... :')
'a tarde em que eu percebi que a imortalidade é não haver medida na medida que vai de mim até ti'. Acho que foi isto que a minha Avó em ensinou em vida e que eu nunca consegui (consigo?) colocar em palavras... Xi apertadinho com mts saudades. J. idem :)

Anónimo disse...

Sinto que não sou eu perante a beleza e a música das tuas palavras. Mas tu insistes e período a período vejo que, felizmente,não há forma de escapar. Obrigada, minha mistral querida.

Alameda de Tílias