sábado, 20 de outubro de 2012

Tempos Mortos.

 
 
 
 
 
E a minha paixão pela cidade media-se pelo momento isolado em que pisava o chão da estação e um sopro abafado me recebia em braços.
 
Eu gostava da viagem estação-sonho-casa se a fazíamos em silêncio: os êxitos nocturnos da Rádio Amália; as frases aleatórias; o dégradé país-cidade-lar.
 
O monólogo irrompia, generalista, para findar intimista e lamurioso dentro dos dramas caseiros.
 
E às vezes eu politizava-me e ensaiava-se o motim: a vontade de falar dele com a minha alergia patológica à solidão.
 
E às vezes não: o sindicalismo dele tropeçava nos "pois" lacónicos desta diplomacia que se me entranhou. 
 
|| porque a cidade é cheia de brilho, Senhor, e eu quero afundar-me nela com a janela semi-cerrada, a brisa mediterrânica, e os êxitos nocturnos da rádio-feita-pra-turista.
 
|| é que, aos meus olhos, Senhor, o teatro tem mais luz do que a cidade inteira e eu peço para que os semáforos congelem no vermelho e as estreias em cartaz me inundem o pensamento.
 
|| São onze, a peça termina, e as palmas ouvem-se altas como palpitações. As actrizes retiram a maquilhagem em camarins dourados e os corações explodem de cheios.
 
|| e eu expludo de cheia e volto ao táxi, ao semáforo vermelho, aos êxitos nocturnos de "Quando Lisboa anoitece".
 
 
Os semáforos já estão verdes, Senhor, suba pela Avenida com alguma velocidade por favor, que eu gosto da imagem corrida dos quiosques alumiados pela luz decadente do fumo .
 
Ele subia assim como eu pedia e contornava a rotunda em velocidade de pião. E eu não dizia nada não sei bem porquê.
 
É que o momento da rotunda para ele era como o do teatro para mim: eu julgava-me em cima do palco, ele julgava-se em Monte Carlo.
 
 
|| E a minha vida interior naqueles-anos-sem-tempo vivia-se nesses tempos mortos, que são os tempos entre aquilo que se faz e aquilo que se vai fazer.
 
|| Tempo do autocarro que não chega. Do almoço que não vem. Da reunião que tarda.
 
|| São, afinal, mais vivos os tempos que digo mortos.
 
 
Estico as pernas e gozo os derradeiros minutos
 
pré carregamento de malas
pré arrumação de tralhas
pré elaboração de tarefas em tempo recorde
 
 
Porque a vida é curta e não corres por nada senão contra a tua própria morte.
 
 
|| era a factura, Senhor. Obrigada. Até à próxima.
 
||Obrigado sou eu. Continuação.
 
 
[continuação de quê é algo que nunca ninguém explorou devidamente e que deverá permanecer em modo enigmático a bem da ocupação mental dos mais líricos]
 
 
 
 Fotografia: direitos de autor de João Josué; publicação no blogue http://desenhosebicicleta.blogspot.pt/2012/10/comboio.html.
 
 
 

7 comentários:

Me, Myself and I disse...

Aleluia :)

Pedro Malaquias disse...

Gosto disto. Beijo. Continuação.

Anónimo disse...

Eu só queria fazer um breve comentário para dizer que eu estou feliz por ter encontrado o seu blog. Graças

Anónimo disse...

Era mais um texto, senhor...mesmo sem fatura porque a pressa e a necessidade é mesmo muita. Obrigada!

Anónimo disse...

- era só mais um texto, senhor, mesmo sem fatura. A necessidade é mesmo muita, senhor. O senhor bem sabe como nos faz falta. Obrigada, continuação...

Anónimo disse...

Mistral, tenho saudades da tua escrita. Que vida é a sua que lhe rouba tempo para dar prazer ao lazer...faço questão em lhe dizer que não tem o direito de me ter roubado esse prazer.

Anónimo disse...

E hoje abro este blog e vejo a luz da minha alma.
Beijo, Mistral "desaparecida".

Alameda de Tílias