Uma sala escura e uma cara que o computador fazia azul.
Dossiês abertos sobre as horas, páginas marcadas a um canto de cansaço, lápis e esferográficas pretas espalhados sobre a mesa.
Fado ou tango a entrar pelo trabalho dentro.
Algo de solidão e algo de calma.
Cabeça curvada sobre o teclado: lia.
Cabeça de frente para o computador: escrevia.
Cabeça voltada para a janela alta e branca sobre bairros de Lisboa.
A rua de Santa Marta. A rua de São José.
A casa de Natália Correia.
E ao longe, um bocado de Castelo. Iluminado este, alumiadas aquelas.
E três anos depois, a cara azul da neta reconhece os olhos azúis da avó dentro do vidro.
O rosto da avó pendurado na vidraça, bondoso e vigilante.
*
Parecia que me abraçava: candeeiro a meia luz do cansaço que se me entranhava.
Levantei-me, abri a janela para ver em que rua, casa ou gente pousavam os teus pés.
Mas tu estavas suspensa sobre a cidade, minha vela azul.
Os teus olhos brilhavam mais do que nunca e eu confirmei que Deus inventou uma tonalidade de azul só para ti.
Não nos mexemos mais e não dissemos nada porque ambas sabemos o que se passou nestes três anos em que estiveste dentro do vidro da minha vida.
*
Sala clara, dossiês fechados, páginas imaculadas, computador desligado.
Algo de saudade a entrar-me pela alma dentro.
De novo, fado. De novo, tango.
Cidade silenciosa. Indefesa.
E, ao longe, um bocado de castelo.
Volto todos os dias à sala e vejo o vidro húmido.
Húmida é a areia depois do mar.
3 comentários:
Estranho para muitos, não para nós que também vivemos muito suspensas e etéreas. Entrei no sonho ou nem saí dele?
E assim respondeste à minha pergunta de ontem.
Adoro a última frase.Basta uma destas para começar um livro :)
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